top of page
Foto do escritorDouglas Ceconello

O Novo Jornalismo e a forma como contamos histórias


São muitos os jornalistas que sentem calafrios de empolgação quando se deparam com a frase “Frank Sinatra está resfriado”. Afinal de contas, é o título de um dos mais emblemáticos textos de Gay Talese, jornalista norte-americano de 92 anos e um dos maiores expoentes do que se convencionou chamar de Novo Jornalismo, ou Jornalismo Literário, vertente que se popularizou nos Estados Unidos a partir da década de 1960.


A missão de Talese era escrever um perfil sobre o célebre cantor, mas no meio do caminho havia algumas pedras. Ou melhor, assessores, seguranças e amigos que impediam uma conversa direta com Sinatra. Assim, depois de inúmeras tentativas, Talese não conseguiu entrevistar o homem cuja história precisava contar. 


O que na maioria dos casos decretaria o fracasso da pauta na verdade se transformou no grande diferencial do texto – e o texto se tornou uma aula. Conversando com pessoas próximas ao cantor e colocando a sua própria interpretação sobre tudo que cercava uma das maiores celebridades da época, Talese desenvolveu talvez o perfil definitivo de Frank Sinatra. 


Estavam no texto os principais conceitos do Novo Jornalismo, abordagem que aplica técnicas literárias (diálogos diretos, narrativas não lineares e descrições detalhadas) e se vale da própria subjetividade do jornalista para construir uma reportagem. O movimento, que teve em Truman Capote, Norman Mailer e Tom Wolfe outros dos seus principais pilares, desafiava as convenções do jornalismo tradicional e sua obsessão pela objetividade para ampliar os limites da forma como se narra uma história, mostrando que a perspectiva e as experiências dos envolvidos também eram valiosas.


Talvez a maior excentricidade no texto de Talese fosse justamente seu personagem, pois o jornalista sempre preferiu abordar histórias de pessoas comuns. “Pessoas ordinárias podem ser extraordinárias”, costuma dizer. Para escrever sobre a revolução nos costumes sexuais nos anos 1960, tema que abordou em “A mulher do próximo”, tornou-se recepcionista de uma casa de massagens, uma imersão um tanto extrema que quase lhe custou seu casamento (que dura até hoje). Na fase de apuração e pesquisa para escrever “Honra teu pai”, aproximou-se de uma tradicional família mafiosa. Entre mulheres seminuas e italianos enfezados, a curiosidade de Talese o levava a caminhar por terrenos desafiadores.


A imersão é uma peça-chave do Novo Jornalismo, pois permite ao escritor criar cenários ricos e personagens expressivos, que combinados a técnicas narrativas e estilísticas provocam um profundo envolvimento do leitor. Não por acaso, Truman Capote viajou para o local do crime e passou anos pesquisando antes de escrever sobre uma família de assassinos do Kansas (EUA), história contada no clássico “A sangue frio”. 


O que fazemos com o legado de Gay Talese e sua turma?


O Novo Jornalismo provocou uma transformação na maneira de contar histórias que ecoa até hoje, com o jornalista deixando de ocupar a função de mero observador para muitas vezes assumir o papel de agente na narrativa. (Não seriam, aliás, blogs e podcasts legítimos herdeiros do Novo Jornalismo?) Porque um dos recursos mais valiosos do gênero é a subjetividade do escritor – a sua forma de interpretar os fatos e o mundo, que permite explorar aspectos mais profundos e complexos das histórias. E, quando aplicamos isso para os dias de hoje, é aí que mora certo perigo.


A popularização de diversas plataformas de publicação, inclusive das redes sociais, fez surgir o próprio reino da subjetividade, onde a primeira pessoa do singular é que detém o poder. E aqui já não se fala apenas de jornalismo, mas de comunicação (e da capacidade de se comunicar). Se o Novo Jornalismo colocou o narrador na condição de participante da história, elevando o próprio jornalismo a uma outra dimensão, talvez tenha deixado também um legado não tão positivo, em que o jornalista (ou qualquer pessoa que se disponha a contar uma história) entende isso como uma licença para adotar uma postura autocentrada, julgando-se maior que a própria história a ser narrada.


É neste ponto que o ruído (ou a turbulência) se instala. Porque, antes do estilo e da subjetividade, o Novo Jornalismo prezava por dois preceitos básicos: fidelidade aos fatos e capacidade de apuração. Toda a magia posterior, seja em casas de massagens ou em meio aos mafiosos, acontecia a partir daí. 


A subjetividade não pode ser encarada como uma brecha para distorcer a realidade ou deixar de lado o rigor com a informação, sobretudo nesses dias estranhos de pós-verdade, quando as crenças e opiniões muitas vezes são mais imperiosas do que os próprios acontecimentos. Porque, se algum dia Gay Talese se dispuser a escrever os dez mandamentos do jornalismo, novo ou atual, provavelmente o primeiro deles será: antes da narração, existe um fato. 


Dez livros essenciais do Novo Jornalismo


A sangue frio – Truman Capote

Fama e anonimato – Gay Talese

O reino e o poder – Gay Talese

Radical chique e o Novo Jornalismo – Tom Wolfe

Hiroshima – John Hersey

A luta – Norman Mailer

A milésima segunda noite da Avenida Paulista – Joel Silveira

Medo e delírio em Las Vegas – Hunter Thompson

Dentro da floresta – David Remnick

Vozes de Tchernóbil – Svetlana Aleksiévitch

0 comentário

Comments


bottom of page